De pai para filho: o barro não morre
O Cruzeiro. 02 de junho de 1970
Há trinta anos, existiam dezoito olarias no pequeno município de São José, próximo a Florianópolis. Lá o grande negócio que passa de pai para filho em muitas gerações é ser oleiro. No Sul, ainda hoje, esta é uma profissão com as mesmas características primitivas de um século atrás; pressionadas pelos impostos e pelas dificuldades de colocação do produto no mercado, fora do estado, as olarias foram minguando e hoje estão reduzidas a seis, de onde sai o sustento de dezenas de famílias de São José. Antes quase toda a cidade vivia do pequeno e incipiente "círculo industrial" que; ao longo dos tempos, não conseguiu fazer nenhum nome famoso, nenhuma obra definitiva.
A manutenção dessas seis olaria só chegou a plena garantia quando o atual governo de Santa Catarina, entendendo a necessidade de preservar o histórico trabalho, isentou-o de todos os impostos. Pergunta-se: livre dos tributos, ser oleiro voltou a ser bom negócio? Por enquanto não, e dificilmente esses homens do barro, que das primeiras horas da manhã até à noite moldam a argila com as mãos, terão uma garantia profissional que lhes dá estabilidade para o sossego da velhice. Os jovens oleiros já começam sem esperança, desanimados com a situação dos mais velhos, avós e pais.
A tradição e o preço
A história dos oleiros de São José vem de longa data. Uma das famílias mais tradicionais ainda em atividade é a de Tomás Silveira de Souza, que herdou do avô, Etelvino, a patente, passando para o filho, Lúcio César de Souza, um rapaz de 24 anos. No mercado municipal, em Florianópolis, onde, além de Lúcio César, existem mais dois proprietários estabelecidos (Laudêncio e Moacir), o filho de seu Tomás é o que tem à venda maior variedade de peças e, por isso, o que mais fatura entre os três. Mesmo assim, Lúcio César reclama um pouco do rendimento que até hoje dá o artesanato. Além das panelas (em quatro tipos e quatro tamanhos diferentes e as mais procuradas pelos turistas), das moringas e potes, um conjunto de peças inspirado num folguedo popular de Santa Catarina, também faz muito sucesso. É o boi-de-mamão, cujas figuras principais são o boi, a cabra, o cavalo, o macaco, o urubu, a Maricota, o doutor, o Mateu, a orquestra (violão, gaita e pandeiro) e a "burmuça", um bicho que engole todo mundo no final da dança. Lúcio César se lamenta.
— A venda agora, antes do verão, é muito pequena. Quase nem compensa a gente ficar no mercado com toda essa mercadoria. Tem dia de cada um de nós não vender nem vinte cruzeiros diários. O jeito é ir agüentando. Não temos outro meio de vida, não sabemos fazer outra coisa, temos que viver disso mesmo.
Os compradores do artesanato de barro de São José são turistas argentinos, uruguaios e paraguaios, além de gaúchos, paulistas, paranaenses, mineiros e cariocas.
De par das dificuldades que têm de negociar o produto em outras praças, os oleiros estão desorientados quanto à possibilidade de poderem ser contribuintes da Previdência Social. Por decisão própria, todos eles gostariam de pagar suas contribuições ao Governo, a fim de, na velhice, terem uma aposentadoria. Nesse particular, ninguém os orienta, nem os protege legalmente, dando condições tanto aos donos de olarias a pagarem condignamente a seus empregados, como a estes de poderem desfrutar dos benefícios oferecidos pelo INPS.
A força feminina
Muitos oleiros são conhecidos em São José como grandes artífices, mas ninguém conseguiu até agora despertar maior curiosidade do que a dona Zenir, a única oleira do município, há 21 anos ela usa as pernas musculosas para fazer girar a roda do seu primitivo instrumento de trabalho, enquanto, no alto, as mãos habilidosas vão dando formas ao bolo de barro. Dali saem miniaturas de tudo (moringa, pote, panela, chaleira, leiteira, boião), ao todo treze modelos diferentes. Dona Zenir é especialista nas pequenas figuras do artesanato da região e nem mesmo os homens lhe batem na precisão e qualidade. Seus trabalhos são mais destinados, às crianças e, num dia ela produz cinqüenta peças, vendendo-as ao mercador a 30 cruzeiros a unidade. Em temporada de trabalho mais intenso, dona Zenir faz três mil miniaturas por mês. É o verão.
— Sou a única mulher, é verdade. Trabalho sozinha. Nem minha irmã me ajuda na olaria. Ela faz o serviço de casa e cuida da criança, enquanto eu fico aqui o dia todo, só parando para comer. Não quero empregado. Tenho coragem, sou do trabalho, resolvo tudo só. Nesses vinte e um anos de oleira, só sei o que é trabalhar. Só vou parar quando não puder mais e isso Deus me livre que aconteça tão cedo.
Os homens do eito
"Isso é trabalho penoso pra homem". A opinião é de seu Duca, que tem a mesma idade de oleiro de dona Zenir. Faz apenas dois anos que ele é proprietário de uma das maiores olarias de São José. Dos oitos filhos de Duca, um é menino, mas ele espera não vê-lo na sua profissão.
Chegando à olaria do Duca, todo o pessoal está em atividade — ele e seus três empregados. Osny é o oleiro mais craque de São José. Enquanto seus colegas fazem trinta potes (uma das peças mais difíceis) por dia, ele produz o dobro. Pela sua destreza, Osny é disputado pelos donos de olaria. Por cada pote, ele ganha dez centavos, enquanto o produtor vende para o distribuidor, no mercado, a cinqüenta centavos a unidade. e este passa ao turista por um cruzeiro e cinqüenta centavos: a moringa também é vendida nessa mesma proporção.
No inverno, além de ser mais difícil a venda, cai a produção das olarias. Os oleiros precisam de dois dias de sol para secar cada lote de peças; depois vão duas vezes ao forno, uma para a primeira queima, outra para receber o brilho do letargirio, um pó comprado a cinco cruzeiros o quilo, o suficiente para dar a terminação em 15 peças grandes. Seu Duca tem desconfiança de que o letargirio poderia ser adquirido mais barato no Rio de Janeiro ou em São Paulo, mas como não tem condições de viajar, compra o produto em Florianópolis.
Mais tempo trabalhando a argila cinza que só Terra Fraca dá, seu João, com 63 anos de idade, começou aos 13 na olaria de seu pai e ainda agora é um oleiro em atividade. Do pai herdou apenas a profissão e a esta altura da vida não tem mais esperança de ser um proprietário. Um dos que trabalham para o seu Duca, ele é dos que mais lamentam não terem pago, em cinqüenta anos de trabalho, a Previdência Social. Viúvo, com uma filha casada, um velho só, seu João fala da amarga verdade dos seus últimos dias de vida.
— Não tenho mais para onde correr. Não tenho instituto. Não tenho quem me sustente. Não tenho economias. O remédio é trabalhar até morrer, se não quiser morrer antes do dia, de fome. Estou com 63 anos mas ainda tenho fôlego para dominar esse barro e fazer muita coisa. Enquanto tiver força nas pernas, essa roda não me escapa.
("De pai para filho: o barro não morre". O Cruzeiro. 02 de junho de 1970)