Artesanato Solidário e a Dinâmica Cultural: tradição e inovação
Helena Sampaio

Introdução
“Pensar o produto
artesanal ou o processo de produção artesanal isoladamente do contexto cultural
em que se origina e se desenvolve implica não reconhecer a relação fundamental
entre esse processo e o produto e a cultura que lhe atribui significado e
funcionalidade” (in “Bases para um trabalho com o artesanato brasileiro hoje”,
1978, CRL).
Essa constatação mantém-se
atual, relevante e cada vez mais disseminada fora do círculo dos especialistas.Mas a difusão de um
conceito, de uma idéia, qual seja, a dimensão cultural do fazer artesanal,
certamente tem como pior conseqüência a perda de sua força, a sua banalização:
uma obviedade que já dispensa reflexão. E às vezes sinto que isso vem
acontecendo quando falamos de artesanato e identidade cultural.
Faz-se oportuno pensar
essa relação, posto haver, de um lado, um certo esvaziamento das noções
convencionais de cultura e, de outro, a expansão do próprio papel da cultura
para outras esferas, como a da política, a da economia. Precisamos entender
mais esse processo em que novos usos vêm sendo atribuídos à cultura e o que
isso pode acrescentar às políticas de promoção do artesanato como vetor de
desenvolvimento local.
De uma perspectiva muito particular, a
das ações desenvolvidas no âmbito do Artesanato Solidário/ArteSol, escolhi
três aspectos da relação artesanato e cultura.
• Cultura como modo
de vida
• Cultura para
consumo
• Cultura como
recurso
Ao abordar esses
aspectos também procurarei contar um pouco como o Artesanato
Solidário/ArteSol, uma orgnização da sociedade civil de interesse público,
voltada para a geração de trabalho e renda por meio da revitalização do
artesanato de tradição, concebe e desenvolve seus projetos de campo.
Cultura como modo de
vida
O primeiro aspecto
"cultura como modo de vida" tem evidentemente forte conteúdo
antropológico: o artesanato popular ou de tradição faz parte do modo de vida
das pessoas que o produzem. Sua produção se organiza a partir de relações de
gênero, com base em valores e conhecimentos sobre a manutenção da vida, de
regras que norteiam comportamentos na esfera pública e privada, etc. Ele se
orienta por padrões estéticos próprios e é transmitido espontaneamente de
geração a geração.
A existência desse
artesanato de tradição - em suas diversas tipologias - é o ponto de
partida do Artesanato Solidário/ArteSol para o desenvolvimento de um
projeto em campo. Ao reconhecer o artesanato como expressão da cultura, as
ações do Artesanato Solidário/ArteSol voltam-se para resgate das formas
tradicionais de sua expressão e para a sua revitalização como um patrimônio
comum daquela comunidade. Na qualidade de bem cultural representa a riqueza que
se contrapõe à situação de pobreza - o ativo local que pode desencadear
oportunidades para a melhoria das condições de vida dos artesáos e suas
famílias.
Para resgatar e revitalizar de forma
compartilhada o saber-fazer artesanal – o Artesanato Solidário/ArteSol promove
alguns diálogos ou, se preferirem, trocas. Duas são fundamentais:
A primeira é a que se realiza entre os
próprios artesãos, por meio de uma série planejada de oficinas com os seguintes
objetivos: a) estimular a transmissão do saber-fazer dos mestres aos mais
jovens; b) desenvolver a organização do trabalho; c) estimular a formação de
associações ou cooperativas; d) incentivar formas de liderança e de gestão
associativa.
O segundo diálogo promovido pelo Artesanato
Solidário/ArteSol acontece entre os artesãos e seus produtos, por meio de
oficinas de criatividade aprimoramento do produto e de formação de preço.Nesse modo de trabalhar do Artesanato
Solidário/ArteSol, o artesanato não é um mero produto/objeto a ser moldado
e direcionado para o mercado para gerar renda para as pessoas que o produzem.
Claro que essa é uma das metas do Artesanato
Solidário/ArteSol. Mas para que isso aconteça de forma sustentável, é
preciso considerar a teia de relações e significados presentes na produção do
artesanato; ter sempre em mente que o artesanato é parte constitutiva do modo
como as pessoas que o fazem vivem, pensam, se expressam, organizam as relações
de gênero, geracional, hierárquicas, baseadas no conhecimento da técnica, no
interior do próprio grupo e fora dele.
Também é preciso enfatizar que não
defendemos, em nome da manutenção das tradições, a preservação de condições de
vida injustas. Trabalhamos para que os artesãos melhorem suas vidas, superem
suas carências materiais, aumentem suas rendas com a venda de seus produtos.
O importante aqui é ter clareza sobre
como proceder às intervenções. Ações que promovem o desenvolvimento da
auto-estima dos artesãos e que fortalecem seus sentimentos de pertença a um
grupo ou a uma comunidade certamente estão alinhadas, coerentes com a tão
desgastada, mas nem sempre entendida relação entre artesanato e identidade
cultural.
Cultura para consumo
ou educação do mercado
O segundo aspecto da questão
artesanato e cultura – ainda da perspectiva do Artesanato Solidário/ArteSol–
refere-se à relação artesanato e mercado consumidor.
Como é missão do Artesanato
Solidário/ArteSol gerar trabalho e renda por meio da revitalização do
artesanato de tradição, é fundamental que os produtos de artesanato cheguem ao
mercado. E devem chegar com qualidade e com preços que lhes garantam a
sustentabilidade do negócio.
As oficinas de produto promovidas pelo
Artesanato Solidário/ArteSol visam aproximar os artesãos do mercado
consumidor, despertar neles preocupações em relação à qualidade e ao preço de
seus produtos, por exemplo; no caso da cerâmica, a resistência da argila depois
da queima, questões que envolvem o manejo sustentável nos casos em que as
matérias-primas são naturais; no caso dos bordados, ajustes em relação ao
acabamento (as oficinas batizadas de "avesso perfeito") ou ainda à
padronização de medidas quando se trata de produtos de tecelagem, bordado e
trançado para mesa. O que se busca fortalecer nessas oficinas,
independentemente da tipologia ou uso, é o diálogo dos artesãos com seus
produtos na relação com o mercado consumidor.
E para chegar lá o
produto não pode perder sua história, aquilo que o torna distinto, único.
Mas nessa seara, ouvimos com
freqüência algumas máximas que precisamos discutir. Vou citar três:
• "O aspecto cultural agrega valor ao
produto". Ora, um produto de artesanato de tradição já tem valor cultural
em si, pois ele é a própria expressão de uma cultura.
• "A ‘tag’ com informações sobre a
origem geográfica e a matéria-prima confere valor cultural ao produto".
Essas informações são necessárias, indispensáveis até, mas não são
legitimadoras de um artesanato de tradição com as características que
apresentamos.
• "O artesanato tem que se adequar ao
mercado". Talvez essa seja a máxima mais discutível.
Primeiro pergunto "que
mercados"? Alguém é capaz de defini-los? Como moldar produtos tradicionais
para ajustar às preferências sazonais de categorias distintas de consumidores,
clientes com perfis e interesses tão diversos. O risco aí é o da obsolescência
programada, expressão cunhada para o mundo dos objetos industrializados,
mas que se aplica aqui ao mundo dos objetos artesanais quando se pretendem
responder a supostas demandas do mercado.
Segundo: que critérios orientam essa
adequação? Sem critérios definidos, "adequações para o mercado" podem
provocar estragos estéticos - afinal, como bem lembra a arquiteta Janete Costa,
"o mau gosto é o gosto dos outros" - e evidenciar desrespeito
aos artesãos. O trabalho do Artesanato
Solidário/ArteSol, e aí vou falar mais especificamente de seu braço
comercial, é para que o artesanato de tradição conquiste e amplie o mercado sem perder as
características técnicas e estéticas que lhe são inerentes, pois elas
constituem o diferencial para atrair o consumidor.
Na relação artesanato/cultura para
consumo, há um ponto que devemos focalizar: é sensibilizar o mercado para consumir
produtos culturais. É pensar quase inversamente a máxima sobre "adequar o
artesanato ao mercado".
Como resultado, poderemos ampliar os
usos do produto do artesanato. Sabemos que os usos do artesanato
variam em razão de sua trajetória como mercadoria nos diferentes segmentos
consumidores da sociedade. Um pote feito originalmente para armazenar água na
cozinha ganha o hall de entrada, a sala de estar ou a biblioteca da família
como objeto decorativo.
Acredito que quando falamos de
expansão do mercado, cultura como consumo, temos que ter sempre em mente a
possibilidade de um pote vir a ocupar o lugar de destaque nas prateleiras das
lojas ou o lugar de honra de nossa sala de visitas. Orgulho de nossas raízes,
de nossos artesãos, de nossa brasilidade.
Cultura como recurso
Cultura como recurso parte da idéia de
que o artesanato de tradição é um patrimônio da coletividade, do grupo para
afirmação e construção de identidade. Relativamente recente, cultura como
recurso vem sendo utilizada (e muito disseminada) nas proposições para a
construção de um mundo melhor em termos sócio-político e econômico; a , ou
seja, para que a cultura aumente sua participação em nossa era de envolvimento
político decadente e de acirramento de conflitos na esfera da cidadania. Vários
pensadores da cultura hoje (Young, Rifkin, Iúdice) chamam a atenção para
isso. Trata-se aí de tomar a cultura como
meio para a paz, para a construção do entendimento entre os povos.
Por sua vez, agências multilaterais
como o Banco Mundial, União Européia, Banco Interamericano de
Desenvolvimento, também têm incluído a cultura como catalisadora do
desenvolvimento humano. Na abertura de um encontro do Banco Mundial, em 1999,
seu então presidente James Wolfensohn apresentava uma "visão holística de
desenvolvimento" em que focalizava a conquista do poder das comunidades
dos pobres de forma que possam manter - sustentar - esses bens que o capacitam
a suportar o trauma e a perda, afugentar a desagregação social, manter a
auto-estima, e ainda fornecer recursos materiais. E comentava: "Existem
dimensões de desenvolvimento da cultura. A cultura material e expressiva é um
recurso sub-valorizado nos países em desenvolvimento. Ela pode gerar renda
através do turismo, do artesanato e outros empreendimentos culturais." (Banco
Mundial, 1999 a:11). Como transformar esse patrimônio - conceito que vem
se alargando, se expandindo, desde Mário de Andrade, passando por Aloísio
Magalhães, pensadores e amantes da cultura brasileira, em
desenvolvimento social?
Como traduzir, se estivermos de
acordo, essas orientações macro para nossos projetos locais de desenvolvimento
cujo ponto de partida é o artesanato de tradição?
Ao promover e estimular trocas ou
diálogos entre os artesãos, o Artesanato Solidário/ArteSol busca
oferecer condições para que o artesanato, expressão da cultura da comunidade,
se torne um ativo para o fortalecimento da identidade do grupo e para o
surgimento de novos atores coletivos, de novas formas de participação.