Artesanato Solidário e a Dinâmica Cultural: tradição e inovação


Artesanato Solidário e a Dinâmica Cultural: tradição e inovação

Helena Sampaio
1 Comunicação apresentada na mesa-redonda “Design sobre a inovação artesanal" do Seminário Iberamericano de Artesanato e Turismo, realizado no âmbito do Fórum Mundial do Turismo pela Paz, Forte de Copacabana, Rio de Janeiro, 25 de outubro de 2005.

Introdução
“Pensar o produto artesanal ou o processo de produção artesanal isoladamente do contexto cultural em que se origina e se desenvolve implica não reconhecer a relação fundamental entre esse processo e o produto e a cultura que lhe atribui significado e funcionalidade” (in “Bases para um trabalho com o artesanato brasileiro hoje”, 1978, CRL).

Essa constatação mantém-se atual, relevante e cada vez mais disseminada fora do círculo dos especialistas.Mas a difusão de um conceito, de uma idéia, qual seja, a dimensão cultural do fazer artesanal, certamente tem como pior conseqüência a perda de sua força, a sua banalização: uma obviedade que já dispensa reflexão. E às vezes sinto que isso vem acontecendo quando falamos de artesanato e identidade cultural.

Faz-se oportuno pensar essa relação, posto haver, de um lado, um certo esvaziamento das noções convencionais de cultura e, de outro, a expansão do próprio papel da cultura para outras esferas, como a da política, a da economia. Precisamos entender mais esse processo em que novos usos vêm sendo atribuídos à cultura e o que isso pode acrescentar às políticas de promoção do artesanato como vetor de desenvolvimento local.
De uma perspectiva muito particular, a das ações desenvolvidas no âmbito do Artesanato Solidário/ArteSol, escolhi três aspectos da relação artesanato e cultura.

• Cultura como modo de vida

• Cultura para consumo

• Cultura como recurso

Ao abordar esses aspectos também procurarei contar um pouco como o Artesanato Solidário/ArteSol, uma orgnização da sociedade civil de interesse público, voltada para a geração de trabalho e renda por meio da revitalização do artesanato de tradição, concebe e desenvolve seus projetos de campo.

Cultura como modo de vida
O primeiro aspecto "cultura como modo de vida" tem evidentemente forte conteúdo antropológico: o artesanato popular ou de tradição faz parte do modo de vida das pessoas que o produzem. Sua produção se organiza a partir de relações de gênero, com base em valores e conhecimentos sobre a manutenção da vida, de regras que norteiam comportamentos na esfera pública e privada, etc. Ele se orienta por padrões estéticos próprios e é transmitido espontaneamente de geração a geração.

A existência desse artesanato de tradição - em suas diversas tipologias - é o ponto de partida do Artesanato Solidário/ArteSol para o desenvolvimento de um projeto em campo. Ao reconhecer o artesanato como expressão da cultura, as ações do Artesanato Solidário/ArteSol voltam-se para resgate das formas tradicionais de sua expressão e para a sua revitalização como um patrimônio comum daquela comunidade. Na qualidade de bem cultural representa a riqueza que se contrapõe à situação de pobreza - o ativo local que pode desencadear oportunidades para a melhoria das condições de vida dos artesáos e suas famílias.

Para resgatar e revitalizar de forma compartilhada o saber-fazer artesanal – o Artesanato Solidário/ArteSol promove alguns diálogos ou, se preferirem, trocas. Duas são fundamentais:
A primeira é a que se realiza entre os próprios artesãos, por meio de uma série planejada de oficinas com os seguintes objetivos: a) estimular a transmissão do saber-fazer dos mestres aos mais jovens; b) desenvolver a organização do trabalho; c) estimular a formação de associações ou cooperativas; d) incentivar formas de liderança e de gestão associativa.

O segundo diálogo promovido pelo Artesanato Solidário/ArteSol acontece entre os artesãos e seus produtos, por meio de oficinas de criatividade aprimoramento do produto e de formação de preço.Nesse modo de trabalhar do Artesanato Solidário/ArteSol, o artesanato não é um mero produto/objeto a ser moldado e direcionado para o mercado para gerar renda para as pessoas que o produzem.

Claro que essa é uma das metas do Artesanato Solidário/ArteSol. Mas para que isso aconteça de forma sustentável, é preciso considerar a teia de relações e significados presentes na produção do artesanato; ter sempre em mente que o artesanato é parte constitutiva do modo como as pessoas que o fazem vivem, pensam, se expressam, organizam as relações de gênero, geracional, hierárquicas, baseadas no conhecimento da técnica, no interior do próprio grupo e fora dele.

Também é preciso enfatizar que não defendemos, em nome da manutenção das tradições, a preservação de condições de vida injustas. Trabalhamos para que os artesãos melhorem suas vidas, superem suas carências materiais, aumentem suas rendas com a venda de seus produtos.

O importante aqui é ter clareza sobre como proceder às intervenções. Ações que promovem o desenvolvimento da auto-estima dos artesãos e que fortalecem seus sentimentos de pertença a um grupo ou a uma comunidade certamente estão alinhadas, coerentes com a tão desgastada, mas nem sempre entendida relação entre artesanato e identidade cultural.

Cultura para consumo ou educação do mercado
O segundo aspecto da questão artesanato e cultura – ainda da perspectiva do Artesanato Solidário/ArteSol– refere-se à relação artesanato e mercado consumidor.

Como é missão do Artesanato Solidário/ArteSol gerar trabalho e renda por meio da revitalização do artesanato de tradição, é fundamental que os produtos de artesanato cheguem ao mercado. E devem chegar com qualidade e com preços que lhes garantam a sustentabilidade do negócio.
As oficinas de produto promovidas pelo Artesanato Solidário/ArteSol visam aproximar os artesãos do mercado consumidor, despertar neles preocupações em relação à qualidade e ao preço de seus produtos, por exemplo; no caso da cerâmica, a resistência da argila depois da queima, questões que envolvem o manejo sustentável nos casos em que as matérias-primas são naturais; no caso dos bordados, ajustes em relação ao acabamento (as oficinas batizadas de "avesso perfeito") ou ainda à padronização de medidas quando se trata de produtos de tecelagem, bordado e trançado para mesa. O que se busca fortalecer nessas oficinas, independentemente da tipologia ou uso, é o diálogo dos artesãos com seus produtos na relação com o mercado consumidor.

E para chegar lá o produto não pode perder sua história, aquilo que o torna distinto, único.
Mas nessa seara, ouvimos com freqüência algumas máximas que precisamos discutir. Vou citar três:

• "O aspecto cultural agrega valor ao produto". Ora, um produto de artesanato de tradição já tem valor cultural em si, pois ele é a própria expressão de uma cultura.

• "A ‘tag’ com informações sobre a origem geográfica e a matéria-prima confere valor cultural ao produto". Essas informações são necessárias, indispensáveis até, mas não são legitimadoras de um artesanato de tradição com as características que apresentamos.

• "O artesanato tem que se adequar ao mercado". Talvez essa seja a máxima mais discutível.

Primeiro pergunto "que mercados"? Alguém é capaz de defini-los? Como moldar produtos tradicionais para ajustar às preferências sazonais de categorias distintas de consumidores, clientes com perfis e interesses tão diversos. O risco aí é o da obsolescência programada, expressão cunhada para o mundo dos objetos industrializados, mas que se aplica aqui ao mundo dos objetos artesanais quando se pretendem responder a supostas demandas do mercado.

Segundo: que critérios orientam essa adequação? Sem critérios definidos, "adequações para o mercado" podem provocar estragos estéticos - afinal, como bem lembra a arquiteta Janete Costa, "o mau gosto é o gosto dos outros" - e evidenciar desrespeito aos artesãos. O trabalho do Artesanato Solidário/ArteSol, e aí vou falar mais especificamente de seu braço comercial, é para que o artesanato de tradição conquiste e amplie o mercado sem perder as características técnicas e estéticas que lhe são inerentes, pois elas constituem o diferencial para atrair o consumidor.
Na relação artesanato/cultura para consumo, há um ponto que devemos focalizar: é sensibilizar o mercado para consumir produtos culturais. É pensar quase inversamente a máxima sobre "adequar o artesanato ao mercado".

Como resultado, poderemos ampliar os usos do produto do artesanato. Sabemos que os usos do artesanato variam em razão de sua trajetória como mercadoria nos diferentes segmentos consumidores da sociedade. Um pote feito originalmente para armazenar água na cozinha ganha o hall de entrada, a sala de estar ou a biblioteca da família como objeto decorativo.

Acredito que quando falamos de expansão do mercado, cultura como consumo, temos que ter sempre em mente a possibilidade de um pote vir a ocupar o lugar de destaque nas prateleiras das lojas ou o lugar de honra de nossa sala de visitas. Orgulho de nossas raízes, de nossos artesãos, de nossa brasilidade.

Cultura como recurso
Cultura como recurso parte da idéia de que o artesanato de tradição é um patrimônio da coletividade, do grupo para afirmação e construção de identidade. Relativamente recente, cultura como recurso vem sendo utilizada (e muito disseminada) nas proposições para a construção de um mundo melhor em termos sócio-político e econômico; a , ou seja, para que a cultura aumente sua participação em nossa era de envolvimento político decadente e de acirramento de conflitos na esfera da cidadania. Vários pensadores da cultura hoje (Young, Rifkin, Iúdice) chamam a atenção para isso. Trata-se aí de tomar a cultura como meio para a paz, para a construção do entendimento entre os povos.

Por sua vez, agências multilaterais como o Banco Mundial, União Européia, Banco Interamericano de Desenvolvimento, também têm incluído a cultura como catalisadora do desenvolvimento humano. Na abertura de um encontro do Banco Mundial, em 1999, seu então presidente James Wolfensohn apresentava uma "visão holística de desenvolvimento" em que focalizava a conquista do poder das comunidades dos pobres de forma que possam manter - sustentar - esses bens que o capacitam a suportar o trauma e a perda, afugentar a desagregação social, manter a auto-estima, e ainda fornecer recursos materiais. E comentava: "Existem dimensões de desenvolvimento da cultura. A cultura material e expressiva é um recurso sub-valorizado nos países em desenvolvimento. Ela pode gerar renda através do turismo, do artesanato e outros empreendimentos culturais." (Banco Mundial, 1999 a:11). Como transformar esse patrimônio - conceito que vem se alargando, se expandindo, desde Mário de Andrade, passando por Aloísio Magalhães, pensadores e amantes da cultura brasileira, em desenvolvimento social?
Como traduzir, se estivermos de acordo, essas orientações macro para nossos projetos locais de desenvolvimento cujo ponto de partida é o artesanato de tradição?

Ao promover e estimular trocas ou diálogos entre os artesãos, o Artesanato Solidário/ArteSol busca oferecer condições para que o artesanato, expressão da cultura da comunidade, se torne um ativo para o fortalecimento da identidade do grupo e para o surgimento de novos atores coletivos, de novas formas de participação.